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A LETRA DA LEI

  • RafaelCiampi
  • 23 de mar. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 19 de mai. de 2020

“A atual conjuntura não é para afastar a contaminação de você. Lutamos para que não contaminemos outras pessoas. Por isso, não saia de casa. Nós, que temos pessoas queridas no grupo de risco, deveremos a você nossa eterna gratidão pelo seu sacrifício ao não sair”.


“E” chegou do exterior. Passou por diversos países. Para celebrar o momento, resolveu fazer um encontro vocálico, só para os mais íntimos, e convidou apenas A, I, O e U. Durante o evento, vários ditongos e tritongos, sem nenhum hiato.

Algumas semanas depois A, resolveu encontrar-se com conhecidos. Como não estava atento aos riscos e é bem mais popular que E chamou os silenciosos B, C, D, F, G, J, L, M, N, P, Q, R, S, T, V, X e Z. H, que é meio sem graça, ficou de fora. K, W e Y que preferem estar em termos estrangeiros, científicos ou nomes próprios, foram excluídos por sua arrogância. A retribuiu o convite de E, estendeu-o para I, O, e U.

Foi um verdadeiro livro. Um best seller!! Substantivos, adjetivos, verbos, termos acessórios. Tudo aconteceu! Frases completas, complexas. Orações coordenadas, principais e subordinadas organizaram-se em parágrafos bem concatenados. Todos saíram de lá muito satisfeitos.

Uma semana depois dessa verdadeira biblioteca, E, sentindo-se meio “semi”, já com som de I, principalmente no final de algumas palavras, correu para o hospital, ao saber que seus sintomas eram os temidos, descritos nos jornais a todo o momento. Lá chegando, encontrou O, com cara de U. K, W e Y estavam atendendo, por causa de suas experiências técnicas. Entre parênteses, com luvas, toucas, máscaras e tom austero, no esforço de socorrer a todos que chegavam, prolixamente. H, como sempre, acompanhava L, C e N. A presenciou uma cena que há muito não via: H junto de P e a histórica falta de contato com S, pelo menos no Brasil (ninguém sabe porque lá fora eles se davam tão bem e aqui falam-se tão pouco), também foi deixada de lado. H estava se superando, ali.

O dia foi muito intenso. Muitos erros gramaticais acontecendo. Por causa da pressa e do medo, trocaram o S pelo Ç. Os acentos – que aparecem apenas por exigência dos editores de texto – como sempre, ficaram de lado e como não haviam editores confundiram êxito, com hesito (o H, X e S, são muito confusos e, por isso, meio abandonados. Era certeza de acontecer algo assim). Todos corriam, mas quando se juntavam só saia: dor, sofrimento, medo, arrependimento, urgência, morte e seus sinônimos. Não havia exceção, por medo da ortografia deixaram-na de lado, e assim, a língua Portuguesa foi perdendo sua essência original e abandonou termos ditos cultos.

No fim, não teve jeito, a crase, que não foi aplicada corretamente hora nenhuma, acabou sendo enfiada ante a um termo masculino. A vírgula, tão enjeitada, não tinha forças para expor a ordem inversa dos termos e acabou separando o sujeito do verbo. Aquela frase morreu. O trema, que não se vê a tanto tempo, também morreu. Parece que ele estava se relacionando com estrangeiros, sem o menor pudor. Embora, aqui, não desse bola para ninguém. Acabou aparecendo em um nome próprio que tinha ligação com muitas expressões coloquiais. Contaminou todos os termos da redação.

Num último esforço, sabendo que muitos estão respeitando os protocolos de segurança, adotados, aproveitando o confinamento em conjunto, apresentaram o seguinte:

“A atual conjuntura não é de cautela para afastar a contaminação de você, exclusivamente. Hoje, lutamos, ao nos isolarmos, para que, primordialmente, não contaminemos, mesmo que inadvertidamente, outras pessoas. Por isso, independentemente da sua excelente condição de saúde, por favor, não saia de casa. Nós, que temos pessoas queridas no grupo de risco, deveremos a você nossa eterna gratidão pelo seu enorme sacrifício ao não sair”.


As exclamações, mesmo sabendo que são constantemente confundidas com o ponto de interrogação, correram para ajudar a explicar a seriedade e a gravidade da situação e as demais letras, cuidaram do afastamento social – mais de dois espaços –, aproveitando o efeito estético, dado pela preocupação com a proteção de todos, para dar ainda mais ênfase à frase. Respeitem a gramática, digo, a pandemia.


F I Q U E E M C A S A ! ! ! ! ! ! !


(Entendeu, ou quer que desenhe?)


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