A outra identidade
- RafaelCiampi
- 4 de fev. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 11 de mai. de 2020
“às vezes nos arrependemos de fazer as coisas. Muitas vezes pagamos bem mais caro do que poderíamos prever. Nem sempre as coisas acontecem como queremos. Invasão digital”.
Muitos heróis, do cinema, dos quadrinhos, que foram dos quadrinhos para o cinema, ou até os que morreram de overdose, têm identidade secreta. Uma segunda identidade. Eu acabei precisando de uma segunda via de identidade e, por isso, talvez eu seja um herói.
Como é sabido, vendemos o nosso apartamento (agora você sabe) e compramos um terreno com o dinheiro da venda. Contratamos uma construtora para construir a casa (dava para dizer empresa e/ou executar o projeto, eu sei!).
Para facilitar e baratear, mudamos, em caráter provisório, para a casa dos meus sogros. Deixamos o que não usaríamos durante a obra (móveis, eletrodomésticos, etc) num depósito, chamado guarda móveis. Para isso, contratamos uma transportadora, para fazer o transporte (ficou mais difícil, do que falar mudança). Escolhemos uma quarta-feira, dia de pouco movimento na nossa empresa, para a tarefa. Demoraria muito até acharmos um fim de semana disponível na transportadora.
Começamos os preparativos, mas a correria do trabalho nos atrapalhou e deixamos a maior parte das tarefas para o dia da mudança propriamente dito. Nesse dia, sairíamos da empresa no meio da manhã, tendo tomado as providências para que o dia terminasse sem problemas. Lembrando que nós, feirantes, chegamos às 5h, portanto, por volta das 10h a maior parte do serviço já está feita. Num dia de pouco movimento, como quarta feira, era possível não ter tarefas inadiáveis a serem realizadas.
Mas como diz nosso amigo Murphy (Mârfi), as coisas não saíram como pensamos, veja que não me atrevi a dizer planejamos. As vendas, nesse dia, superaram em muito as expectativas, foi o dia que mais vendemos até então, felizmente/infelizmente (nesse caso, valem as duas). Por causa da correria, usei as oportunidades de precisar comprar alguma coisa fora da loja, para passar no apartamento e coordenar alguma coisa, aproveitando que o trabalho era perto de onde morávamos. A Márcia só conseguiu chegar no fim da tarde.
Os embaladores, apesar de cuidadosos, até onde pude observar, são desesperadamente apressados e saem embalando tudo pelo caminho. Chego a acreditar que se a Cacau dormisse sossegadamente nessa confusão, eles a teriam embalado junto com os tapetes.
Obviamente, por causa da inimiga da perfeição, a coisa não deu muito certo. Acabamos mandando coisas que deveriam ficar com a gente para o depósito e ficamos com algumas coisas que poderiam estar no guarda-móveis.
Meses depois de montarmos o acampamento da família, percebi que minha carteira de motorista (CNH) tinha vencido, mas ainda estava naquele período de carência, de um mês após o vencimento. Fui verificar o procedimento para renovação e constatei que, no caso de CNH vencida, necessita-se da apresentação de CPF e identidade. Por comodidade, desde que a Carteira de Motorista tornou-se documento de identificação oficial válido, parei de andar com minha identidade de 1986, com a foto de um adolescente que parece ser meu irmão mais novo e o CPF, pois esses figuram na CNH.
Lembrando da correria da mudança e das coisas que foram indevidamente para o depósito, dentre elas: identidade e CPF. Expliquei, na clínica de renovação, a minha situação e a pessoa disse que a carteira vencida não é aceita e que tem que apresentar outros documentos oficiais com foto, e ponto final. Mesmo com os meus protestos, informando que o que está vencida é a minha autorização para dirigir. Os outros documentos, ali constantes, estão corretos e válidos. Sempre estiveram.
Liguei para a transportadora para marcar de revirar minhas caixas de papelão, atrás dos documentos. Quando fui verificar o inventário, o arrependimento começou. A quantidade de caixas com “DIVERSOS” estampada era maior que as com nomes adequados tipo: quartinho, escritório, etc. Como eu sabia exatamente onde estavam os documentos, quando estavam em casa, achei que seria fácil achá-los, apesar de trabalhoso, nas pilhas de caixas. Mas não foi.
A primeira tarefa (eu preferia ter enfrentado a Hidra de Lerna) foi marcar o dia em que eu, na presença de dois funcionários da transportadora, teria direito de mexer nas minhas coisas. Quando, enfim, consegui que eles marcassem a data (é, demorou para marcar!) e me avisassem, obviamente no horário que ELES tinham disponível, corri para lá. Embrenhei-me, entre esquerdas e direitas numa viela no Areal. Lá chegando, constatei o óbvio: o depósito nada mais é que uma casa, com móveis e demais pertences de várias pessoas, empilhados e envoltos naqueles plásticos pretos, enrolados com fita crepe e com nomes escritos a mão num rascunho.
Revirei todas as caixas que pude duas vezes. Encontrei as bolas de tênis da Márcia e não achei o que eu estava procurando.
Saí de lá frustrado e com o sentimento de mal atendimento, pois as caixas foram muito mal identificadas e na correria da mudança, não pude intervir nesse quesito, pois eu estava com a cabeça na empresa e não na mudança. Solução: tirar uma nova identidade, já que só vamos concluir a obra no fim do ano e só então acharemos tudo que estiver escondido nas caixas.
Como eu não fazia a menor ideia de como tirar a segunda via da identidade, entrei na internet, perguntei ao pai dos burros moderno (que é pai dos burros, ignorantes, inteligentes, sábios e descrentes) e descobri que eu deveria ir a um posto do Na Hora, portanto comprovante de residência. (Lembra que eu disse estar morando de improviso na casa dos sogros?) Peguei uns boletos que já fiz, desde que me mudei e levei, acreditando que entenderiam a minha situação, mesmo porque o endereço não aparece na identidade. Cheguei lá, expliquei que queria tirar uma nova identidade. O atendente perguntou se eu era casado. Respondi que sim. Ele perguntou o que estava registrado na minha carteira. Eu disse: solteiro. Aí, com certa rispidez, ele perguntou onde estava a minha certidão de casamento. Fiquei com vontade de mentir, dizendo que estava alocada um ponto da anatomia íntima dele. Mais especificamente na extremidade terminal do sistema digestivo, adjacente ao esfíncter, só que com mais rispidez e muito menos palavras, mas mantive isso apenas em pensamento. Expliquei a minha situação e a minha derrota ante ao duelo contra as caixas de papelão. Ele acreditou que ia dar problema, mas me deixou pagar a taxa de renovação e esperar mais de 30 minutos na fila. (É estranho, pois fica parecendo que pagamos para esperar.)
Quando fui atendido a pessoa perguntou: casado? Sim (com arrependimento na voz), você trouxe a certidão de casamento? ... não... e expliquei toda a minha situação, de novo. Ah, vamos conversar com o chefe.
Chegando à mesa do chefe, contei minha história, de novo, mas a versão super reduzida, pois já estava com preguiça. Aí, ele explicou que “eles” (eles quem??) fazem uma varredura na nossa vida, cruzamento de dados. Se algo não estiver de acordo, não emitem a identidade. Portanto, se ele permitisse que eu continuasse o processo, eu teria problemas. Respondi o que concluí, da explicação (e aproveito para te explicar a situação, ou drama, se preferir):
- “Então, você está-me dizendo que eu vou ter que ir ao cartório onde me casei, pedir uma segunda via da certidão de casamento, para poder voltar aqui e tirar a segunda via da minha carteira de identidade, que continua válida, para poder renovar a minha carteira de motorista, que só consta como vencida a minha permissão de dirigir e não os documentos que nela figuram?” Aí, com cara de quem diz “é, dizendo assim, soa esquisito mesmo”, ele respondeu que sim e contou um problema da esposa dele: tinham escrito o nome dela com letra diferente e isso tinha dado conflito de dados. “F***-*e!!”, desenhou-se em minha mente, mas não falei nada. E só agora, tive coragem de confessar. Eu estava muito aborrecido, desde que comecei a empreitada.
Corri em direção ao cartório, para tentar resolver ainda naquele dia o problema. Estacionei na garagem do prédio, corri pelas escadas. Entrei no cartório, peguei o documento e corri de volta para o carro. (Alguns detalhes do processo foram ignorados, por pura preguiça e para dar um ar de maior velocidade ao evento.)
Já nas ruas, ouvi um barulho grave e constante vindo das rodas. Pneu furado! Parei numa vaga de um estacionamento lateral e fui trocar o pneu, já prevendo que não daria tempo de chegar antes das 17h, no guichê onde eu tinha sido atendido. Terminei a parada nos boxes e percebi que minhas mãos estavam mais pretas que o pneu, por causa daquela fuligem que sai dos freios dianteiros. (Fiquei bastante aliviado de ter tido a sensatez de tirar a minha camisa branquinha, antes de iniciar a operação). Fui atrás de um local para lavar as mãos. Entrei, a pé (não tive coragem de tocar em nada dentro do carro), numa garagem, que tinha uma placa, na entrada, dizendo que era proibido o trânsito de pedestres. Como não tinha ninguém à vista, comecei a falar alto para os vigias me ouvirem. Deu certo. Apareceu alguém. Expliquei a situação, poupei-o dos detalhes envolvendo a identidade, cartório e pedi para lavar as mãos. Ele me levou para uma porta onde tinha uma plaquinha dizendo: Refeitório. Imediatamente, constatei a situação: eu ligeiramente suado (porque uma boa parte já tinha secado. Imagine!), usando luvas de fuligem até a metade do antebraço e sem camisa, tendo que entrar nessa sala. Exclamei: estou sem camisa! E o cara me olhando com cara de quem diz “pois é”, disse: “Pois é.” Pedi desculpas. Por sorte a sala estava vazia. A pia era limpinha e não aqueles tanques manchados, de borracharia. Fiquei bem constrangido de ter que me desbotar naquele ambiente caprichosamente limpo. O mais cuidadosamente possível me limpei, o suficiente para me vestir com a camisa branca e limpa, que tirei justamente para que ela permanecesse assim. Acabei, agradeci e desapareci.
Constatei o seguinte: o sistema existe para garantir que o cidadão de bem, no exercício da boa fé, mantenha-se no caminho da retidão e honestidade, os ricos e multimilionários continuem se locupletando... mas os criminosos continuam fazendo a festa (como ouvi, bem depois de escrever esse texto:
- “Por que o sistema, camarada, o sistema é foda”.
E, como nos filmes, TODAS as nossas informações estão em meio virtual. Vi as minhas digitais de adolescente, estampadas naquele cartão onde todos que se registraram no século passado também melaram os dedos. Foto, assinatura, digitais daquela época e atuais. TUDO digitalizado. E disponível para quem tiver acesso. Senti saudades de ter que limpar os dedos de tinta de carimbo. Um prato cheio para quem não está de boa fé.
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