Esconde-esconde
- RafaelCiampi
- 6 de mar. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 11 de mai. de 2020
“Saudosismo, diferenças de gerações, aventuras adolescentes, tecnologia em favor das brincadeiras”
Quando criança, nas férias em Juiz de Fora/MG, costumávamos brincar de pique-esconde. Quase sempre à noite, depois do jantar.
O barato era brincar com primos mais velhos (não. Não sou primo do Berssange). Valendo a rua toda, até o DAE. Para evitar briga com vizinhos, não podíamos nos esconder na “avenidinha”. O quintal da Vó e dos vizinhos estavam nos limites permitidos, mas a Dona Dorinha ficava com raiva, quando a gente se escondia lá.
Os mais novos eram “café com leite”: participavam da brincadeira, mas tinham suas limitações preservadas. Nunca entendi porque café com leite. Será que é porque o leite ameniza o gosto acentuado do café, ou porque aquela é uma bebida bastante reconfortante, que nos reporta a momentos com as mães? Ou ainda porque café é uma bebida de adultos e leite é uma bebida de crianças?
Definidos os participantes, fazíamos o sorteio e quem perdia iria para o pique, contar com a cara voltada para a parede (ou qualquer superfície opaca e larga o suficiente para isso), enquanto os outros saíam em disparada em busca de esconderijo, até ouvir ao longe o famoso: “Lá vou eu!”, que indicava que a partir de então todos estão suscetíveis a serem descobertos e, portanto, condenados à chatíssima tarefa de ficar procurando os outros e contando com a cara na parede, que era um castigo bem comum, na escola, no período das aulas.
Já na adolescência, aqui na capital, os marmanjos, criados em outras cidades, de outras famílias, traziam o conhecimento da brincadeira e antes de descobrirem os prazeres dos bares e boates, resolveram juntar a turma, à noite, para relembrar a infância, ou para esticá-la um pouco mais, enquanto a maturidade não chegava de vez. Interessante que essas seriam as primeiras “saídas à noite”.
Agora, sem a proteção de familiares mais velhos, não havia café com leite. Tínhamos que aceitar todas as regras. E, para evitar sermos chamados de crianças, ou para, pelo menos, evitarmos de nos considerarmos muito infantis, a brincadeira era como um jogo. Valia a quadra toda. Quem descia para o evento, levava a coisa a sério, vinham usando casacos e calças escuras, planejavam trocas de roupas, bonés. Valia tudo, para acrescentar a malícia adolescente ao brinquedo de criança. Quem ficava no pique tinha que ter coragem. O resultado, às vezes, era disputado na corrida. Os mais rápidos eram os mais temidos, mas não imbatíveis. Os mais lentos, faziam uso das sombras e de astúcia. Uma brincadeira saudável que nos põe diante de desafios que não nos trazem maiores consequências, que ter que abraçar uma pilastra e contar até 100 em voz alta, enquanto os outros se divertem, correndo para se esconder de novo.
Como em várias outras brincadeiras infantis, existia as “altas”. Que seria algo como: um político é pego em alguma ilicitude, põe o cargo à disposição, abandona o mandato para o qual se candidatou e foi eleito, para se livrar da punição, traindo duplamente os que nele votaram. Não consigo explicar a “altas” de um jeito melhor.
Outro dia, eu estava passando debaixo de um bloco. Era de tarde, ainda. De repente, um grupo de adolescentes passa correndo por mim para, nitidamente, se esconderem atrás das pilastras. Pensei:
- Aí, tem! Continuei meu caminho, mas prestando atenção no que eles estariam aprontando. De repente a famosa correria e a gritaria: pique 1, 2, 3. Fulano.... Estavam brincando de pique esconde! Adolescentes do século XXI!! Que legal. Sentei em um banco próximo e comecei a tentar entender o limite do jogo e se havia alguma regra particular. Em pouco tempo percebi que a diferença das gerações é gritante e que a liberdade dos que viveram a infância e adolescência nos anos 80/90 não mais faz parte do mundo atual.
Eu brincava com primos adolescentes, enquanto eu era uma criança, valendo a rua toda, o que fez com que, na adolescência, os amigos aumentassem o desafio, valendo a quadra toda. Com mais de 10 pessoas jogando, veja que não disse brincando. O que eu estava presenciando era uma brincadeira infantil, com alguns adolescentes que ainda se aceitavam como crianças, pelo menos naquele momento, um grupo de uns 5, escondendo-se apenas debaixo do bloco, não valendo nem o jardim, ou o bloco do lado.
A minha geração esperaria o cair da noite, para poder se esconder em qualquer lugar, em todo lugar. Percebi a nítida diferença da turma que usava o corpo (as habilidades físicas) em seu favor, que chegava ao fim da noite, com roupas sujas, às vezes rasgadas, com alguns arranhões na pele, suados por causa da correria, algum participante já tinha ido mais cedo para casa, mancando.
O tímido grupo do século XXI, bem mais restrito, podendo ser apenas representantes de um único clã, não ousava pisar no solo áspero do concreto da área externa, ou na terra fofa dos jardins. Não sujariam seus tênis novinhos da marca famosa, nem suas roupas do shopping, nem que isso custasse perder um pouco mais da aventura. Não se vangloriariam de suas cicatrizes, pois a geração na porta cicatrizes.
Eis que então surge um dos que ficou por último, aproxima-se sorrateiramente do pique. Até então não tinha sido percebido, mas dali para frente, ele teria que se expor, pois as pilastras alinhadas dificultam o esconderijo e o pegador estava no pique, aguardando, temendo o indesejável “salve todos”, o pior castigo.
Eu, já um pouco desanimado com a graça da brincadeira atual, quis ver o desfecho. Fiquei observando e vi o garoto nervoso, resmungando, quase arrancando os cabelos por ter percebido onde tinha se metido. De repente, ele mete a mão no bolso e saca seu celular. Pensei: que absurdo, ele está parando a brincadeira, para atender ao telefone, ou olhar algo na internet? Mas não! Ele, ligou a câmera do celular e posicionou o telefone, como um periscópio, para ver sem ser visto, ou pelo menos, para ver sem ser identificado. Percebi então, que a marcha da humanidade em direção à escravidão da tecnologia está num estágio muito mais avançado, apesar da astúcia associada à manobra.
Levantei e concluí meu trajeto a pé, até a padaria, pensando que lições tirar dali. Não fiquei para saber quem ganharia a corrida final. Nenhum deles seria páreo para os adolescentes da 102.





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